segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O Passado

Há anos eu aprendi uma lição, e desde então cultivo o hábito de revisitar o passado e checar a trajetória da minha vida. Constantemente analiso meus passos para calibrar a bússola, afinal é muito fácil perder-se no caminho, ou simplesmente passar pela vida sem importar-se com a direção a seguir. Essa lição eu aprendi com um texto simples do livro de “Lamentações de Jeremias”, que diz: “Quero trazer à memória o que me pode dar esperança” (Lm. 3:21).
Algumas pessoas revivem (ou ao menos tentam) o passado: mágoas escondidas, glórias esquecidas, finadas lembranças que lhes roubam o poder de ação, lhes amarram, lhes impedem de prosseguir. São como navios ancorados no mar, longe do porto e incapazes de prosseguir ao destino final.

O pequeno texto que citei ensina um princípio simples e profundo: lembrar o passado é saudável quando lhe traz esperança, quando lhe impulsiona para o futuro. Não importa qual seja esse passado, se triste e sombrio, ou cheio de glórias, ele precisa ser entendido como parte de todo um processo com o qual Deus (ou a vida, se você preferir) tem trabalhado com você. Quando entendemos que nosso passado nos trouxe ao lugar onde estamos, podemos ver com mais clareza para onde podemos prosseguir, e para onde NÃO podemos prosseguir. Nossos acertos nos ensinam, mas nossos erros muito mais.

Não acredito em sorte. Não acredito em azar. Acredito que tudo tem um propósito pessoal e intransferível, e esse propósito só é perceptível para quem consegue “ver de fora” sua própria vida, entender-se, reconhecer humildemente seus fracassos, e valorizar suas próprias virtudes.

Ouvi recentemente em um discurso: “olhe para trás e pense nas pessoas que te trouxeram aqui, desde muitos anos atrás até hoje. Tenho certeza de que ninguém está aqui por si mesmo”. Sabe, quem te “trouxe aqui” não foi apenas quem te ajudou, quem pagou sua passagem, quem te deu o emprego, nem apenas a pessoa que te amou e incentivou. Algumas vezes, quem te trouxe aqui foi quem zombou de você, quem disse que você não era capaz, quem te demitiu, quem te fez sofrer; gente que, provavelmente sem querer, te deu o último impulso para prosseguir, e aí está você. E não se deve pensar nelas com um sentimento de vingança ou revanche. Sei que parece estranho pensar assim, mas a verdade é que mesmo o sofrimento tem seu valor, quando ele é capaz produzir ação, aprendizado e esperança.

Não adianta tentar esquecer o passado, muito menos revivê-lo. É preciso usá-lo, porque você não é uma outra pessoa, por mais que você queira ser. Você é a mesma pessoa, mais madura, mais sábia, mais capaz de entender-se e de lidar com os desafios da vida. E, se você estiver disposto, muitos desafios ainda virão.

sábado, 24 de outubro de 2009

Na estrada


Tenho andando meio sumido do blog, não por falta de assunto, claro, o tempo é que tem sido curto e, felizmente, tem passado depressa. Creio que vale a pena comentar sobre algumas boas coisas que têm acontecido por aqui, especialmente sobre a noite de ontem.

Desde que cheguei a Oregon, tenho sido recebido com muito carinho por professores da Western Oregon University, amigos de classe e músicos em geral que admiram e respeitam a música brasileira. Sempre soube dessa admiração, mas confesso que me surpreendi com essa generosa receptividade. Bom, eles têm o jeito deles de serem calorosos, bem diferente do nosso, mas já estou me acostumando e começando a entender quando eles realmente gostam de uma coisa.

Uma das muitas vantagens em estudar aqui é a possibilidade de tocar em uma big band e, melhor ainda, poder escrever arranjos para ela e ensaiar 3 vezes por semana. Tem sido assim desde que cheguei. Alguns alunos dessa orquestra – eu entre eles – fomos convidados a tocar com a “American Metropole Orchestra” em um show com Sonny Turner durante dois dias em Colusa, na Califórnia, há 8 horas de ônibus de Salem, em Oregon. Entre os 32 integrantes da orquestra, vários professores de universidades da região.

Sonny Turner, hoje com 70 anos, foi o vocalista do “The Platters”, conhecido grupo vocal norte-americano cujos músicas “Only You”, “My Girl” e “The Great Pretender”, entre outras, tornaram-se muito conhecidas em todo o mundo, inclusive no Brasil, na década de 70.

Confesso que fiquei muito impressionado com a jovialidade desse senhor que, mesmo aos 70, continua cantando com perfeição suas músicas nos tons originais, dançando como um garoto e com um humor de quem trabalha por puro prazer. Quem é tenor sabe como é difícil alcançar um si bemol 3! E lá vai Sonny com sua voz gigante alcançando o tal si bemol e arrancando aplausos da garotada – jovens estudantes de música convidados para o evento - e de casais idosos que, abraçados, pareciam reviver uma época de ouro de suas vidas.


Foram assim as duas últimas noites: emocionantes e surpreendentes. Estou na estrada de volta para Oregon agora, refletindo sobre os caminhos que se fecham e sobre os que se abrem, sobre as inúmeras maneiras que Deus encontra de nos abençoar todos os dias. Mas é preciso ter olhos atentos pra nunca perder nenhum detalhe. Mais histórias virão.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Deus, justiça e política



Sempre me interessei pelos assuntos da política, e sei que isso não é muito frequente na juventude brasileira. Entendo que é um tema bastante chato para a maioria de nós, principalmente nesses tempos em que parece que não há muito pelo que brigar, por quem torcer, e nem a quem defender; tempos de desesperança política. Afinal, se nem os políticos parecem se interessar mais por ideologia, por que nos interessaríamos?

Tenho 33 anos, e por esse interesse estranho pelo assunto, guardo na memória algumas cenas marcantes. Algumas lembranças do General Figueiredo, o último dos militares a governar o Brasil, e que na minha memória parecia um grande grosseiro, como aliás era peculiar na ditadura; a campanha das "diretas já”, que pedia eleições diretas para presidente (lembro da Fafá de Belém cantando o hino nacional, bem como a presença de Lula e Fernando Henrique no evento, que incluía políticos e artistas famosos).


Campanha "diretas já", 1984.



Lembro da primeira eleição, ainda não direta, após o período militar, disputada entre Tancredo Neves e Paulo Maluf, ganha por Tancredo (a programação da TV era interrompida a todo instante para mostrar o resultado parcial); lembro do dia em que caminhava pra escola, e me disseram que não haveria aula porque o Tancredo tinha morrido, antes mesmo de assumir a presidência, notícia que emocionou o país, embalada por “Coração de Estudante” de Milton Nascimento e Wagner Tiso; lembro de José Sarney assumindo a presidência em seu lugar, em 1985; lembro das infinitas trocas de moeda, da inflação absurda; lembro da Constituição promulgada em 1988, uma vitória do país, consolidando a democracia após tantos anos de regime militar; lembro da eleição de Collor em 1989 – eu estava começando o ensino médio, ainda não votava – lembro das armações da Rede Globo contra Lula nessa eleição e posteriormente de sua participação no “impeachment” do funesto presidente. Enfim, são muitas lembranças, algumas entrecortadas, e que de alguma forma, me remetem ao tempo presente, às crises no Congresso e na política brasileira como um todo, onde se encontram muitas dessas figuras notórias de outros tempos.

Hoje eu lia um texto bíblico que queria muito compartilhar com vocês. É pequeno, mas muito enfático, e trata de política. Só pra contextualizar: Deus fala, através de seu profeta Jeremias, ao Rei Jeoaquim. Israel tinha essa forte “relação” estabelecida com Deus, o que significa dizer que a Lei de Deus era mais que uma série de preceitos religiosos, mas uma forma de se viver. Ou seja, a vida social e política também deviam seguir as mesmas leis de Deus, os mesmos princípios de vida estabelecidos em Sua Palavra. Frequentemente, Deus permitia a derrota do povo de Israel em uma batalha, por exemplo, em função da desobediência e corrupção de seu rei, e o oposto também ocorria.

Pois bem, Jeoaquim – o alvo desse discurso divino – era o sucessor do rei Josias (seu pai). Enquanto Josias havia sido um rei justo aos olhos de Deus, Jeoaquim fez o que muitos de nossos políticos fazem todos os dias, e mereceu a seguinte advertência divina. Eis então a mensagem de Deus para ele (e por que não dizer, para todos eles?):

"Ai daquele que constrói o seu palácio por meios corruptos, seus aposentos, pela injustiça, fazendo os seus compatriotas trabalharem por nada, sem pagar-lhes o devido salário. Ele diz: 'Construirei para mim um grande palácio, com aposentos espaçosos'. Faz amplas janelas, reveste o palácio de cedro e pinta-o de vermelho'. Você acha que acumular cedro faz de você um rei? O seu pai não teve comida e bebida? Ele fez o que era justo e certo, e tudo ia bem com ele. Ele defendeu a causa do pobre e do necessitado, e, assim, tudo corria bem. Não é isso que significa conhecer-me?", declara o Senhor. "Mas você não vê nem pensa noutra coisa além de lucro desonesto, derramar sangue inocente, opressão e extorsão". Portanto, assim diz o Senhor a respeito de Jeoaquim, filho de Josias, rei de Judá: "Não se lamentarão por ele, clamando: 'Ah, meu irmão!' ou 'Ah, minha irmã!'. Nem se lamentarão, clamando: 'Ah, meu senhor!' ou 'Ah, sua majestade!'. Ele terá o enterro de um jumento: arrastado e lançado fora das portas de Jerusalém!
(Jeremias 22: 13-19 – Nova Versão Internacional)

As raposas da política nacional têm agora uma vida curta. A maioria está numa idade bem avançada, em visível decadência do corpo. Alguns acumularam muita riqueza, compraram muitas terras, redes de TV e rádio, Estados inteiros até. Para onde as levarão depois? Para seus túmulos? Com quem hão de compartilhar suas vitórias? Quem são seus verdadeiros amigos? Onde estará sua glória? Em algum nome de rua ou escola? Quem há de lamentar por eles?

Resta-lhes apenas aguardar seus belos enterros de jumento...
Que Deus tenha piedade do povo brasileiro!

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Viver e aprender

Estávamos sentados numa mureta, junto ao portão de entrada de sua antiga casa, no bairro do Fonseca, em Niterói. Enquanto eu tinha meu CD nas mãos e fazia uma pequena dedicatória ao anfitrião, Marcos Nimrichter (http://www.marcosnimrichter.com), conversávamos sobre vida pessoal e profissional. Ele, grande pianista e acordeonista, músico muito experiente, me dava conselhos e incentivo a respeito do que poderia se seguir àquele meu trabalho recém-gravado.

Fiz a dedicatória meio sem jeito, afinal já havia dedicado a ele algumas palavras no encarte do CD, e ele dizia: “faça algo simples, pelo menos pra eu me lembrar desse dia aqui, e dessa nossa conversa”.

A conversa girou em torno de sonhos e projetos de cada um, ele me falava de seu mestrado na UFRJ e eu falava das possibilidades que avistava com meu CD, de fazer alguns shows e tocar por esse mundão. Em determinado momento, disse a ele que eu desejava fazer um mestrado no exterior, mas que andava meio desanimado com a burocracia envolvida e tal. Ele me disse uma coisa que me esqueci depois, mas de algum jeito ficou guardada: “Bom, então você VAI fazer seu mestrado no exterior. Se é isso que você quer, você já decidiu, só precisa do tempo pra isso acontecer!”. Na hora, achei legal ouvir aquilo, mas poderiam ter sido apenas palavras, como quando dizemos “boa sorte” ou “passe lá em casa”. Mas a verdade é que ele não disse assim, ele realmente sabia o que estava dizendo, embora suas palavras, como eu disse antes, tenham saído da minha mente poucos dias depois.

Isso foi em dezembro de 2008. Em fevereiro de 2009, iniciei um processo de inscrição para o mestrado em música, em meio a tantas outras idéias que me ocorriam, inclusive o planejamento do lançamento do CD, e eu agia como quem atira em várias direções. Há muito o que falar sobre esse processo, mas o fato é que o lançamento do CD não ocorreu, e hoje, 7 meses depois (e há aproximadamente 11.000 km de distância), aqui estou eu começando meu mestrado em música, no Estado de Oregon, nos EUA.


Contei essa história porque acredito firmemente que definimos os rumos de nossas vidas. Não acredito e frequentemente me irrito com o discurso de que "basta sonhar e as coisas acontecem" (parece letra de música da Xuxa!). Como cristão, acredito na interferência divina sobre nossas vidas particulares, mas também acredito em nosso livre arbítrio, dentro de uma determinada “jurisprudência”. E acreditar em ambas não é contraditório.

Assim, muitas vezes Deus nos permite dar rumo às nossas vidas e aprender com nossas próprias escolhas, porém sem nunca nos abandonar - ao contrário do que pensam certos religiosos que costumam falar em nome de Deus para manipular seus quase sempre imaturos fiéis. E há outros momentos em que Ele interfere diretamente no movimento das coisas, no curso da história, e a isso chamamos “milagre”, seja através de um sinal exterior estrondoso, ou através de uma voz doce e calma dentro de nós.

Seja como for, quando penso em Deus como um Pai, imagino que seu objetivo seja nos tornar maduros pra tomarmos decisões maduras, quebrarmos menos a cara e alcançarmos felicidade plena.

Acredito que eu vivo hoje uma combinação de muitas decisões pessoais (com muitas lições aprendidas, esparadrapos e gesso) e muitas interferências divinas. Não importa o quanto seja de cada uma, me consola saber que, seja como e aonde for, Sua mão está sobre mim.

“...a prova da fé produz perseverança. E a perseverança deve ter ação completa, a fim de que vocês sejam maduros e íntegros, sem lhes faltar coisa alguma” (Tiago 1: 3,4)

quinta-feira, 25 de junho de 2009

De fãs a parceiros - "Making of" da gravação



Foi em 1991 que conheci o trabalho do guitarrista norte-americano Pat Metheny, através do LP “Letter from Home”. No mesmo disco, conheci e me impressionei com o percussionista brasileiro Armando Marçal, que integrou sua banda por 10 anos.

Armando Marçal é filho e neto de percussionistas. Aos 15 anos, seu pai o levou para tocar surdo na bateria da Portela; aos 17 tocou pela primeira vez em um desfile da escola de samba. A partir daí, tocou com praticamente todos os grandes nomes da MPB (Ivan Lins, Djavan, João Bosco, Lulu Santos, Gal Costa e Caetano Veloso são apenas alguns deles), além de estrelas internacionais como Paul Simon e o próprio Pat).

Nós do “Dialeto Brasileiro” (eu, Wagner Soares e Cláudio Félix) compartilhamos de uma grande admiração pelo Marçal. É um músico de um bom gosto incrível! E foi dessa admiração comum que surgiu a idéia de convidá-lo para participar da gravação de nosso CD “No Caminho”, em 2008.

Através de amigos, chegamos ao seu telefone e foi grande a surpresa ao descobrir que aquele cara que tanto admirávamos pelo talento, era também uma pessoa sensacional: “Claro, Dom! Vai ser um prazer gravar com vocês!”





Marçal foi bastante animado para a gravação, levou praticamente todo seu material. Extremamente atencioso e profissional, curtiu as músicas e foi dando idéias atrás de idéias. A primeira que ouviu foi uma música minha chamada “Trem das cinco”, e essa foi também a primeira música a ser gravada. O vídeo acima mostra um trecho da gravação dessa música, em que ele utiliza as “tumbadoras”, também conhecidas como “congas”.

No próximo vídeo, ele já havia gravado as congas e estávamos ouvindo o resultado. Ao mesmo tempo, ele ia propondo o que poderia ser feito depois: no caso, a colocação de um triângulo e de vários efeitos de percussão. No vídeo aparecemos eu, Marçal e Cláudio. O Wagner está filmando.



Foi uma tarde divertida e muito especial. Rimos muito. Ele ainda gravaria mais duas músicas: “Baía Grande” do Wagner, e “Sem Você”, uma parceria minha com Wagner.

Enfim, preparei esse texto para revelar um pouco dos bastidores da gravação de nosso CD e para falar de nossa admiração integral por esse grande músico brasileiro, internacionalmente reconhecido. Essa admiração ganhou força, virou cumplicidade musical, e marca o início de uma amizade. O resultado de todo esse trabalho está em nosso CD. Visite nosso site: http://www.dialetobrasileiro.com.br/

Você pode ouvir a gravação definitiva de “Trem das cinco” em http://www.myspace.com/cassiovianna


Se você quer curtir um solo bonito do Marçal com o baterista Kiko Freitas, acompanhando o João Bosco no Programa Altas Horas, da Rede Globo, dê uma olhada nesse vídeo no youtube, vale a pena: http://www.youtube.com/watch?v=AoCaV19nRII.


Informações sobre Marçal, acesse http://www.myspace.com/armandomarcal

Grande abraço a todos vocês!





sábado, 23 de maio de 2009

Aos cansados e sobrecarregados

Voltei a ouvir recentemente um CD antigo do grupo vocal “Take 6” chamado “So much 2 say” (1990) e concentrei minha atenção na linda “Come unto me”. É uma pena eu não ter encontrado um vídeo disponível para postá-lo aqui. Deixo apenas a recomendação e a imagem da capa. Ao ouvir a música, me dei conta de que se trata de um texto bíblico muito conhecido e citado por muita gente. Foi suficiente para eu passar algumas horas pensando no texto, analisando-o sobre uma perspectiva um pouco diferente da que rotineiramente ouvimos. Segue, portanto, o texto da música, reproduzida do livro de Mateus 11:28-30:


"Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados,
e eu vos aliviarei.
Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim,
porque sou manso e humilde de coração;
e achareis descanso para a vossa alma.
Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve".



Quem foi criado em um contexto cristão (católico, protestante ou em qualquer uma de suas múltiplas vertentes) sempre interpreta essas palavras de Jesus como uma mensagem destinada àqueles que não professam uma fé cristã, e que, por isso, trariam consigo um pesado fardo de culpa, impiedade e pecado. Tal interpretação não pode ser totalmente descartada, até porque a palavra “todos” é mesmo muito abrangente! Porém, quando analisamos o contexto do discurso e seu público-alvo, percebemos que há outra ênfase a ser considerada.

Nos capítulos 5 a 7 de Mateus, está o Sermão da Montanha, uma série de ensinamentos que Jesus fazia à multidão que o seguia. A partir do capítulo 8, Ele desce a montanha, a multidão ainda o segue (Mt 8:1), e Ele realiza milagres diante dos olhos de todos. Entre aquelas pessoas, fica muito clara a presença de gente simples que buscava verdadeiramente a Deus através da religião judaica (também com suas muitas vertentes). Muitas dessas pessoas necessitavam de alimento, cura física e esperança. Havia entre eles também alguns líderes da religião, que se infiltravam em meio à multidão para ouvir a mensagem de Cristo por curiosidade, desconfiança e vigilância. A esses religiosos, Jesus direciona suas palavras mais duras, como no capítulo seguinte, de número 12, versículo 34, em que Ele diz “Raça de víboras, como podeis falar coisas boas, sendo maus? Porque a boca fala do que está cheio o coração”.

Pois bem, o ponto a que quero chegar é que, ao fazer o convite aos cansados e sobrecarregados, Jesus se refere principalmente àquelas pessoas simples que buscavam a Deus na religião e que ainda assim se sentiam vazias e sobrecarregadas. Mas, se elas eram devotas e religiosas, como poderiam sentir-se assim? Ora, a religião – toda religião – frequentemente ata pesados fardos às costas dos homens, através de seus preceitos, regras, proibições, dogmas, rigores, ritos e ordenanças vazias. Tais fardos não apenas são duros de carregar, como também não são capazes de proporcionar a desejada aproximação de Deus. Por uma razão simples: a religião trabalha em função do mérito alcançado; já o Evangelho considera a todos não-merecedores, e por isso, oferece a Graça.

Aproximar-se de Deus não é cumprir ritos e ordenanças. Não é ser escravo da vontade caprichosa de um líder espiritual. Não é submeter-se a sacrifícios. Não é deixar de ter alegria; ao contrário, é reconhecer o verdadeiro prazer de viver.

Aproximar-se de Deus é ter rumo, é saber seu lugar no mundo, é ter atitudes de amor em relação a si mesmo e ao próximo, é viabilizar a paz, é gerar frutos de alegria nas pessoas, é ter firmeza e confiança Nele em meio a qualquer situação de dor, é reconhecer a dádiva da vida, é ser pleno. E isso tudo alivia o peso da existência, torna o ar mais puro, a visão mais nítida.

O Evangelho não é uma religião. Jesus não veio fundar o Cristianismo. A igreja que Ele fundou não é Católica ou Protestante. Ele fundou uma comunidade de pessoas que se amavam e que se aproximavam de Deus por reconhecerem Seu amor, por se ajudarem mutuamente e por compartilharem uma missão; e lhes chamou “igreja”. O Evangelho é uma mudança de vida, uma nova compreensão da ação do homem sobre a Terra e de sua relação com o próximo, com a Criação e com o Criador. O Evangelho é a única forma verdadeira de restabelecermos a união perdida com Deus, de nos tornarmos seus amigos pela renovação do nosso entendimento.

Reconheço os riscos de se fazer acréscimos a textos bíblicos, mas baseado no capítulo 23 de Mateus, faço os seguintes comentários, sem medo de errar. Ele diz:


“Vinde a mim
(Ele é o rumo, não é verdade que todos os caminhos levam a Deus)
todos os que estais cansados e sobrecarregados

(principalmente aqueles que carregam os fardos doutrinários das religiões e seus rituais vazios)
e eu vos aliviarei
(Ele vai tirar, e não colocar mais ordenanças e jugos)
Tomai sobre vós o meu jugo
(façam o que Jesus manda, e não necessariamente o que mandam os líderes religiosos)
e aprendei de mim
(Ele pode nos ensinar todos os dias, de várias maneiras, em qualquer lugar)
porque sou manso e humilde de coração
(os religiosos profissionais não são mansos e muito menos humildes)
e achareis descanso para a vossa alma
(até agora, apenas cumprir a Lei não lhes deu nenhum descanso, ao contrário)
Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve.



Que possamos ser livres e sentir a leveza de ter paz com Deus!

quarta-feira, 22 de abril de 2009

A cultura da falta de cultura

Quase sempre estudei em escola pública. Na verdade, fiz a primeira série do ensino fundamental numa escola particular do interior, Natividade (RJ). Depois disso, só pus o pé de novo numa escola particular na antiga 8ª série, quando eu sonhava em ser militar e ingressar no Colégio Naval, optando naquele ano por um desses muitos cursos preparatórios. Acabei passando para o curso técnico em química no CEFET-Química, no Maracanã. Assim, fiz o ensino médio também em escola pública, dessa vez federal.

Lembro-me bem de vários colegas de classe de 1º grau. Lembro de gente muito pobre – eu estava longe de ser rico, mas sempre tive condições de estudar e ainda fazer meus cursinhos de inglês e de piano, um luxo pra muita gente. Muitos de meus amigos moravam em regiões miseráveis de São Gonçalo (RJ). Às vezes ia até a casa de um amigo para um trabalho escolar em grupo, e me surpreendia com aquela situação. Entre eles, havia muita gente talentosa: o amigo que era um excelente humorista, o cara que fazia caricaturas de todo mundo com extrema habilidade, o garotão grafiteiro, e uma dúzia de “nerds” que pareciam ter estudado matemática no ventre materno. Quanta gente boa!

Nunca mais pude revê-los. Espero que muitos tenham dado bom rumo às suas vidas, mas sei que boa parte se perdeu, abandonou talentos e vive de algum biscate no mesmo lugar em que vivia há 20 anos atrás.

Muito se fala da educação no Brasil, que ela é o caminho, e tal. Que ela é um caos no Brasil todo mundo concorda. Mas minha sincera opinião é que há oportunidades para todos os que desejarem de alguma forma se desenvolver. Reconheço que o Brasil não é um grande investidor de talentos, mas acredito na força pessoal, no trabalho árduo, no suor daqueles que “cavam” oportunidades e não desistem de perseguir seus sonhos, mesmo nesta terra injusta.

Quando reflito seriamente sobre essa questão, é impossível não considerar a hipocrisia da mídia nacional, especialmente a TV, a meu ver uma das principais responsáveis pelo “culto à ignorância” de nossos tempos. A mídia bate nos governos, chama-os de incompetentes, questiona seus investimentos em educação, mas ela mesma investe pesado na ignorância de seus “consumidores”. Dá com uma mão (pequena) e tira com a outra (gigante). A produção de lixo é um assombro. Os programas de auditório, os programas sensacionalistas em que apresentadores ignorantes fazem seu circo, as novelas e seu pobre conteúdo, a música medíocre das tardes de domingo... até as notícias dos telejornais têm a consistência do caldo de um miojo (quando você põe 1 copo de água a mais do que o recomendado na receita).

Quando a mídia resolve fazer média (desculpe, não era pra ser um trocadilho!) e “contribuir” para a educação do país, monta um telecurso pra passar naquele horário em que a gente está dormindo e – não se iludam – investindo muito pouco de seu rico dinheiro, através de uma parceria, ou com muitos reais em isenções de impostos. Reconheço que os telecursos são uma boa iniciativa, mas o resto da programação não precisava caminhar tanto na direção oposta. Nossa mídia não é em nada melhor que nossos governos.

Mas esse não é um texto-denúncia. Esse é um texto de esperança. Sou professor em escola pública (de música, ao menos). Convivo com gente de todas as classes sociais e vejo muito talento nessas pessoas. Minha palavra para a moçada é que é possível alcançar seus objetivos, mas apenas de uma maneira: com muito esforço. Achou que eu ia iniciar uma conversa de auto-ajuda, no estilo: “você pode tudo”, “você é o cara”, “basta querer e seus sonhos se realizam”? De jeito nenhum! Quer moleza? Fique em casa vendo o Faustão. Quer futuro? Desliga o lixo dessa televisão e vai correr atrás de seus sonhos. Quando estiver bem cansado, corra mais.

Estude, leia, pergunte, conheça suas habilidades, desenvolva-as... nem tudo é pago, nem tudo é caro. Leia tudo, livros científicos, didáticos, poesia, romance, receitas de bolo. Leia muito. Melhore seu português falado e escrito, melhore sua dicção, melhore sua aparência. Além de suas amizades normais, tenha contato com pessoas mais velhas também. Abra sua mente. Gosta de música? Ouça funk, jazz, samba, hip-hop, rock, clássicos e sertanejo, seja capaz de distinguir suas diferenças, e aí sim, sinta-se livre para escolher o que mais lhe agradar. Mas não seja uma pessoa que só ouve uma coisa, que só lê uma coisa (ou nada), que só fala as mesmas coisas. Ouça as pessoas e desenvolva a habilidade de filtrar essas informações. Trabalhe muito e tenha objetivos. Não se acomode!

Não adianta reclamar do país, da família, da falta de dinheiro, do governo, das injustiças, da vida. Mãos à obra. Vai por mim, um dia sua grande oportunidade vai aparecer!
Ah, e por favor, enquanto isso desligue um pouco a televisão!

domingo, 19 de abril de 2009

Fiz calar e sossegar a minha alma...

Hoje eu voltei a pensar na ansiedade. Não é difícil observar pessoas ansiosas à nossa volta. Também não é difícil observar nossas próprias inquietações a respeito de tudo.

A ansiedade me lembra muito aquele dedo que você martela com força enquanto tenta pôr um quadro (“maldito quadro”, você pensa) na parede. Durante o dia ele dói, mas a gente vai de um lado pra outro, faz mil coisas e até consegue esquecê-lo. Acontece que a noite chega, você se deita na cama pra dormir, e o dedo lateja como nunca. Pulsa, pulsa, pulsa, como se o coração estivesse batendo dentro dele. De noite, no silêncio, a ansiedade também lateja mais forte porque o coração está mesmo nela. E o sono vai virar olheira no dia seguinte.

Admiro profundamente um homem chamado Davi. Davi foi o mais importante rei de Israel, por volta do ano 1.000 AC. Além de um bravo guerreiro – foi dele, ainda jovem, a famosa vitória sobre o gigante filisteu Golias, na história bíblica - Davi também era dono de um coração extremamente sensível: era músico (compositor e instrumentista) e poeta. Foi o responsável pela maior parte das 150 canções que formam o livro bíblico dos Salmos. Um dos aspectos mais fascinantes da vida de Davi é o fato de sua falibilidade, suas ansiedades e seus defeitos serem expostos da mesma forma que suas inúmeras virtudes. Não é um personagem de conto de fadas. É um cara como eu e você.

Em uma de suas canções (a de número 131 do livro dos Salmos) ele diz o seguinte:

“SENHOR, não é soberbo o meu coração, nem altivo o meu olhar;
não ando à procura de grandes coisas,
nem de coisas maravilhosas demais para mim.
Pelo contrário, fiz calar e sossegar a minha alma;
como a criança desmamada se aquieta nos braços de sua mãe,
como essa criança é a minha alma para comigo.
Espera, ó Israel, no SENHOR, desde agora e para sempre”.

Em poucas palavras, queria compartilhar com você o que aprendi hoje com esse trecho:

1 – Não devo desejar além do que realmente preciso pra viver feliz – é fundamental que tenhamos projetos de vida, eu tenho nutrido vários em mim. Na verdade, nascemos para conquistar, criar, produzir, aprender, ensinar. Acontece que há limites para nossos desejos. Não ceda à pressão de querer ganhar o mundo custe o que custar, de se tornar um milionário, de ser o melhor sempre, de competir o tempo todo. Não acredite que é feliz quem tem mais, quem pode mais. Muitas dessas ansiedades só trazem frustração, porque esse é um jogo que não tem fim, sempre vai faltar alguma coisa. Não seja soberbo o seu coração, nem altivo o seu olhar.

2 – Preciso aprender a calar e a sossegar minha alma – Tem gente que não suporta o silêncio. Isso pode ser um mal sinal. Hoje eu lia um texto muito interessante de Rubem Amorese (www.amorese.com.br/OBRAS/PUBLICADOS/Publicados53.html), no qual ele dizia, a respeito do ser humano moderno: “O silêncio já lhe é insuportável, pois teme um encontro com sua alma, sem saber o que lhe dizer”. De fato, precisamos aprender a meditar sobre nossas ações, nossos princípios de vida, nossas motivações, nossas atitudes. A verdade é que sabemos quando erramos, sabemos quando temos que pedir perdão ou quando temos que reavaliar o rumo das coisas. O que nos impede de tomar as atitudes acertadas? Por que evitamos o silêncio? Por que não nos ouvimos? O filho de Davi, Salomão, reinou em Israel após seu pai e foi considerado o homem mais sábio do mundo. Ele dizia que “até o tolo, quando se cala, é tido por sábio”. Calar pode ser um grande exercício de auto-conhecimento, de humildade e de aprendizado.

3 – Preciso aprender a confiar – A criança desmamada se aquieta nos braços da mãe porque sua relação com ela é de amor, dependência incondicional e confiança total. É essa a relação que tento manter com Aquele que, creio, é o doador e condutor de minha vida. Sei que as coisas andarão em um bom rumo se minhas próprias ansiedades não atrapalharem o processo, me fazendo agir de forma impensada, desorganizada e equivocada. Um profeta bíblico, Jeremias, diria: “Bom é esperar em silêncio a salvação do Senhor”. A criança desmamada se cala ao voltar aos braços da mãe, porque se sente protegida e sabe que será alimentada. Ela não pode fazer quase nada por si mesma, quase não tem consciência do que acontece, mas descansa naquela “sensação” de paz.

Escrevo essas coisas pra você, porque na verdade escrevo primeiro pra mim mesmo, e encontro nessas palavras o consolo que preciso hoje para descansar minha alma, para dormir em paz, para retirar meu coração de dentro do dedo martelado, e devolvê-lo a seu devido lugar.

Tenha paz.

terça-feira, 7 de abril de 2009

A Heroína da Av. Angélica

Segunda-feira, manhã nublada, eu caminhava sozinho pelas ruas de São Paulo, como gosto de fazer quando conheço um novo lugar. O céu nublado, uma fina garoa acabava de cessar. Parei na esquina da Av. Angélica com a Praça Marechal Deodoro. Aguardava o sinal fechar para atravessar a rua.

Uma senhora muito idosa chamava a atenção de todos. Certamente já ultrapassados os 70 anos de idade e provavelmente moradora de rua, D. Eva postava-se em pé naquela esquina, com alguns pertences e um apito na boca. O sinal abria, os carros andavam e então ela fazia sinal para eles andarem, sempre nessa ordem equívoca, apitando sem parar. O sinal fechava, os carros paravam, ela fazia sinal para eles pararem; voltava-se à rua oposta, mandando que aqueles carros andassem, quando eles já tinham saído há alguns segundos. Ela seguia em seu ofício tresloucado, arrancando risos das pessoas, como um maestro insano regendo com dois compassos de atraso uma orquestra de veículos furiosos. As pessoas sorriam, mas não a repudiavam. É provável que sua idade muito avançada lhes tenha enternecido os corações.

Nada sei sobre D. Eva, mas nos minutos seguintes pensei muito sobre ela, sobre o apito insistente, sobre os movimentos atrasados e incertos de suas mãos, sobre seus pertences postos no canto e sobre sua aparente alegria. De alguma maneira, minha leitura daquela imagem me fez crer que D. Eva era um pouco feliz ali. Como se, de algum jeito, ela pudesse encontrar naqueles gestos aquilo que mais buscava: um sentido para sua vida. Naquele ritual aparentemente vazio descansava seu desvairado coração.

Quase posso vê-la sentir o mundo se mover ao seu comando; em seus pensamentos, sua mão tem o poder de mudar as situações; seu apito valente salva a vida de milhares de pedestres indefesos; sua postura ereta e heróica controla os agressivos instintos daquelas máquinas de transporte. Vejo D. Eva, em seu alucinado exercício de poder, representar seu desejo de mudar sua própria história, de controlar seu destino, de tornar sua vida melhor. Ou talvez D. Eva queira apenas uma simples razão de viver.

Lembro-me e recomendo a leitura de “Em busca de sentido” do Dr. Viktor Frankl, neurologista e psiquiatra judeu-austríaco que desenvolveu a Logoterapia. Frankl desenvolveu o conceito de doenças noogênicas (“provenientes do espírito”). Segundo ele, além das causas somáticas e psíquicas do sofrimento humano, era preciso reconhecer um sofrimento de origem propriamente espiritual, nascido da experiência do absurdo, da perda do sentido da vida. Dizia que "o homem pode suportar tudo, menos a falta de sentido".

São nossos pequenos e grandes sentidos cotidianos que nos mantêm vivos. Nossas mais simples razões de existência – amores, trabalho, missão, etc. – nos conferem valor, renovam as esperanças e nos enchem de motivação.



Há meses carrego comigo um celular com câmera. Depois de ver D. Eva e pensar nessas coisas todas, me dei conta de que não registrei aquele momento. Voltei correndo na esperança de encontrá-la, mas ela tinha sumido. Perguntei ao frentista do posto e ele me indicou sua direção. Fui atrás, mas não consegui achá-la. Tirei apenas essa foto da esquina onde a vi.

Disse que nada sei sobre D. Eva. Na verdade nem pude perguntar seu nome. Mas a ela dedico esse texto, com gratidão por me fazer pensar no sentido de minha própria existência, na alegria das pequenas coisas e na beleza oculta em uma manhã de outono paulistano.

segunda-feira, 30 de março de 2009

Crianças, Música e Pontes

Sempre me dei muito bem com crianças. Não sei o que tenho, nem sei se tenho alguma coisa, mas admito que algo em mim as atrai, em boa parte dos casos. Não sou o “tio divertido e engraçado” que imaginamos que elas desejam, mas talvez algumas crianças percebam minha admiração por elas e apenas retribuam com uma atenção especial. Isso me faz lembrar de uma situação curiosa, em Búzios, em 2008.


Eu estava na praia da Azeda, tomando meus 30 minutos possíveis de sol sem proteção (eu sei, dei mole!), quando vi três crianças de aparentes 8 a 10 anos. Eram assim: um menino e uma menina bem branquinhos que pareciam vir de algum lugar muito frio e distante, e uma menina morena que parecia brasileira. Inexplicavelmente, o menino se sentou bem ao meu lado e ficou olhando o mar, na mesma posição que eu. Aquela cena daria uma bela foto, mas eu não tinha uma máquina à mão. As meninas, um pouco mais distantes, viraram-se para ele e perguntaram algo numa língua difícil, que identifiquei ser o alemão. (Há longos 17 anos atrás, fiz dois anos do curso de alemão e, coincidentemente, havia voltado a estudar sozinho pouco tempo antes desse encontro).

Tentei falar com ele em inglês, mas ele pouco entendia. Só consegui confirmar seu país de origem. A partir daí, longe da vigilância e das possíveis e prováveis gozações de adultos perversos, me senti à vontade pra travar um diálogo germânico com o garoto e suas irmãs (a menina morena com carinha de brasileira também era alemã). Como meu alemão equivale ao de uma criança de 5 anos, o menino me corrigia seriamente quando eu errava e se esforçava muito para me compreender, com uma atenção e ar de professor dedicado que me ajudaram a ficar realmente relaxado. Fui melhorando aos poucos. Chegamos a um papo animado sobre música e descobri que ele estuda bateria. Convidei-os então a irem me assistir tocar naquela noite. Só após 40 minutos de conversa, uma jovem senhora, mãe dos meninos, se aproximou. Cheguei a achar que ela fosse dar uma bronca neles. Mas sentou-se e começamos a conversar. Com ela eu já não me arriscaria a falar em alemão, claro. Preferi usar meu inglês equivalente ao de uma criança de 10 anos. A essa altura, depois de umas 2 horas de papo e com a pele vermelha feito um tomate, reforcei o convite e me despedi.

Eles realmente atenderam ao meu convite e foram me assistir no restaurante à noite. Foi uma noite muito divertida. Conversamos muito. Ela me contou o quanto o menino falou de mim para ela durante o dia, lembrando-a o tempo todo do encontro que teríamos à noite. Pedi nomes de cantores alemães para estudar a língua com suas músicas, afinal acho que ninguém aqui jamais ouviu de algum cantor ou banda pop alemã. Fizeram-me uma lista.

Para completar a noite – infelizmente quando já havíamos acabado de tocar – entraram no restaurante o Wagner Tiso e sua mulher. Chamei os meninos e expliquei que aquele era um famoso pianista, compositor e maestro brasileiro (Wagner Tiso compôs “Coração de Estudante” com Milton Nascimento, entre tantas outras canções, músicas instrumentais e trilhas para filmes). Fomos juntos pedir um autógrafo para os meninos. Ele, como sempre aliás, foi muito atencioso. Autografou três vezes, para cada um deles em particular: Philipp, Mia e Caterina. A esposa do Wagner tirou fotos nossas juntos, mas eles estão me devendo estas fotos!

Pensando nisso hoje, lembro que um dia um grupo de crianças chegou perto de Jesus. Seus discípulos – adultos neuróticos como nós – tentavam impedi-las de se aproximarem. Ganharam uma bela bronca e um aviso: “Quem não receber o Reino de Deus como uma criança, de maneira nenhuma entrará nele” (Marcos 10:15).

Quando lembro dessa história e de minha amizade com Philipp, penso nessa linda característica dessas pequenas criaturas: crianças abrem portas. Talvez porque tenham o coração escancarado para a vida. Talvez porque não tenham medo de aprender; ao contrário, aprender é sua mais vital vocação. Talvez por ainda não carregarem as neuroses que teimamos em construir em nós. Talvez porque não tenham preconceitos. Talvez porque ainda tenham pontes ao redor de si, pontes que tratamos de implodir ao longo da vida. Talvez porque saibam falar em qualquer língua.

Vários meses e emails depois, enviei meu CD para aquela família de Munique. Recebi de volta um CD do “Rosenstolz” – um grupo de música pop alemã – e um cartão com a seguinte mensagem de meu pequeno amigo Philipp, mensagem que você viu na foto lá em cima e que traduzo aqui:



“Querido Cassio,
Talvez você ainda se lembre de mim. Sou o Philipp. Recebemos o seu CD e ficamos totalmente fascinados. Ficarei feliz se voltarmos a nos ver aqui em Munique. Te enviamos um CD alemão chamado “Rosenstolz”. Espero que você entenda tudo que te escrevi”.


Sim, Philipp... ainda lembro, entendo e aprendo com você!

sábado, 28 de março de 2009

"Olhai os lírios do campo"

“Não andeis ansiosos por coisa alguma... Olhai os lírios do campo, eles não trabalham nem tecem. Eu, contudo, vos afirmo que nem (o Rei) Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer um deles. Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós, homens de pequena fé... Portanto não vos inquieteis com o dia de amanhã, pois o amanhã trará consigo os seus cuidados.” (Mateus 6: 25, 28, 29 e 34)



Se estas palavras podiam parecer desafiadoras quando foram proferidas, há dois mil anos atrás, certamente parecerão impossíveis de se cumprir em nossos dias. Vivemos uma era de muita ansiedade, pressões, busca por resultados, alta velocidade, excesso de informação, superficialidade das relações afetivas. Em nossos dias, parar é um grande problema: é não produzir, não render, é perder tempo e dinheiro. Acontece que, vez por outra, somos forçados a parar. E isso é necessário. Conheço pessoas que pararam após um problema de saúde, um trauma, após uma separação difícil; outros após a dádiva do nascimento de um filho.

Eu também precisei – e preciso constantemente – parar um pouco: avaliar a vida, os rumos, calibrar a bússola, questionar valores e prioridades. Nesses momentos, o texto transcrito acima sempre me foi uma boa lembrança. Os princípios do Evangelho valem absolutamente para todos, inclusive para os que não crêem. Se você crê que Deus cuida de você, não ande ansioso. Mas se você não crê nem mesmo em Sua existência, não ande ansioso também, afinal você já deve ter percebido que a vida segue seu rumo e há muitos momentos em que não temos o controle das situações; os lírios nem cogitam a necessidade de se vestirem bem. Se o controle está nas mãos de Deus ou do acaso, descansar o coração, conhecer-se, reavaliar a rota e descobrir possíveis ganhos que podem advir das aparentes perdas serão sempre bons conselhos.

O mar e a música são minhas companhias constantes, um refúgio para minha alma. A música que produzo e os textos deste blog refletem hoje esse 'pit-stop' da alma. Tenho buscado viver um dia por vez. Tem dado certo. Sei que logo entro no turbilhão de novo. Espero apenas estar mais bem preparado. Aliás, é impossível não comentar que “preparado” me dá a idéia de “pré-parado”, talvez tenha a ver com aquele que parou antes, e agora está pronto pra enfrentar o que vier.