quarta-feira, 22 de abril de 2009

A cultura da falta de cultura

Quase sempre estudei em escola pública. Na verdade, fiz a primeira série do ensino fundamental numa escola particular do interior, Natividade (RJ). Depois disso, só pus o pé de novo numa escola particular na antiga 8ª série, quando eu sonhava em ser militar e ingressar no Colégio Naval, optando naquele ano por um desses muitos cursos preparatórios. Acabei passando para o curso técnico em química no CEFET-Química, no Maracanã. Assim, fiz o ensino médio também em escola pública, dessa vez federal.

Lembro-me bem de vários colegas de classe de 1º grau. Lembro de gente muito pobre – eu estava longe de ser rico, mas sempre tive condições de estudar e ainda fazer meus cursinhos de inglês e de piano, um luxo pra muita gente. Muitos de meus amigos moravam em regiões miseráveis de São Gonçalo (RJ). Às vezes ia até a casa de um amigo para um trabalho escolar em grupo, e me surpreendia com aquela situação. Entre eles, havia muita gente talentosa: o amigo que era um excelente humorista, o cara que fazia caricaturas de todo mundo com extrema habilidade, o garotão grafiteiro, e uma dúzia de “nerds” que pareciam ter estudado matemática no ventre materno. Quanta gente boa!

Nunca mais pude revê-los. Espero que muitos tenham dado bom rumo às suas vidas, mas sei que boa parte se perdeu, abandonou talentos e vive de algum biscate no mesmo lugar em que vivia há 20 anos atrás.

Muito se fala da educação no Brasil, que ela é o caminho, e tal. Que ela é um caos no Brasil todo mundo concorda. Mas minha sincera opinião é que há oportunidades para todos os que desejarem de alguma forma se desenvolver. Reconheço que o Brasil não é um grande investidor de talentos, mas acredito na força pessoal, no trabalho árduo, no suor daqueles que “cavam” oportunidades e não desistem de perseguir seus sonhos, mesmo nesta terra injusta.

Quando reflito seriamente sobre essa questão, é impossível não considerar a hipocrisia da mídia nacional, especialmente a TV, a meu ver uma das principais responsáveis pelo “culto à ignorância” de nossos tempos. A mídia bate nos governos, chama-os de incompetentes, questiona seus investimentos em educação, mas ela mesma investe pesado na ignorância de seus “consumidores”. Dá com uma mão (pequena) e tira com a outra (gigante). A produção de lixo é um assombro. Os programas de auditório, os programas sensacionalistas em que apresentadores ignorantes fazem seu circo, as novelas e seu pobre conteúdo, a música medíocre das tardes de domingo... até as notícias dos telejornais têm a consistência do caldo de um miojo (quando você põe 1 copo de água a mais do que o recomendado na receita).

Quando a mídia resolve fazer média (desculpe, não era pra ser um trocadilho!) e “contribuir” para a educação do país, monta um telecurso pra passar naquele horário em que a gente está dormindo e – não se iludam – investindo muito pouco de seu rico dinheiro, através de uma parceria, ou com muitos reais em isenções de impostos. Reconheço que os telecursos são uma boa iniciativa, mas o resto da programação não precisava caminhar tanto na direção oposta. Nossa mídia não é em nada melhor que nossos governos.

Mas esse não é um texto-denúncia. Esse é um texto de esperança. Sou professor em escola pública (de música, ao menos). Convivo com gente de todas as classes sociais e vejo muito talento nessas pessoas. Minha palavra para a moçada é que é possível alcançar seus objetivos, mas apenas de uma maneira: com muito esforço. Achou que eu ia iniciar uma conversa de auto-ajuda, no estilo: “você pode tudo”, “você é o cara”, “basta querer e seus sonhos se realizam”? De jeito nenhum! Quer moleza? Fique em casa vendo o Faustão. Quer futuro? Desliga o lixo dessa televisão e vai correr atrás de seus sonhos. Quando estiver bem cansado, corra mais.

Estude, leia, pergunte, conheça suas habilidades, desenvolva-as... nem tudo é pago, nem tudo é caro. Leia tudo, livros científicos, didáticos, poesia, romance, receitas de bolo. Leia muito. Melhore seu português falado e escrito, melhore sua dicção, melhore sua aparência. Além de suas amizades normais, tenha contato com pessoas mais velhas também. Abra sua mente. Gosta de música? Ouça funk, jazz, samba, hip-hop, rock, clássicos e sertanejo, seja capaz de distinguir suas diferenças, e aí sim, sinta-se livre para escolher o que mais lhe agradar. Mas não seja uma pessoa que só ouve uma coisa, que só lê uma coisa (ou nada), que só fala as mesmas coisas. Ouça as pessoas e desenvolva a habilidade de filtrar essas informações. Trabalhe muito e tenha objetivos. Não se acomode!

Não adianta reclamar do país, da família, da falta de dinheiro, do governo, das injustiças, da vida. Mãos à obra. Vai por mim, um dia sua grande oportunidade vai aparecer!
Ah, e por favor, enquanto isso desligue um pouco a televisão!

domingo, 19 de abril de 2009

Fiz calar e sossegar a minha alma...

Hoje eu voltei a pensar na ansiedade. Não é difícil observar pessoas ansiosas à nossa volta. Também não é difícil observar nossas próprias inquietações a respeito de tudo.

A ansiedade me lembra muito aquele dedo que você martela com força enquanto tenta pôr um quadro (“maldito quadro”, você pensa) na parede. Durante o dia ele dói, mas a gente vai de um lado pra outro, faz mil coisas e até consegue esquecê-lo. Acontece que a noite chega, você se deita na cama pra dormir, e o dedo lateja como nunca. Pulsa, pulsa, pulsa, como se o coração estivesse batendo dentro dele. De noite, no silêncio, a ansiedade também lateja mais forte porque o coração está mesmo nela. E o sono vai virar olheira no dia seguinte.

Admiro profundamente um homem chamado Davi. Davi foi o mais importante rei de Israel, por volta do ano 1.000 AC. Além de um bravo guerreiro – foi dele, ainda jovem, a famosa vitória sobre o gigante filisteu Golias, na história bíblica - Davi também era dono de um coração extremamente sensível: era músico (compositor e instrumentista) e poeta. Foi o responsável pela maior parte das 150 canções que formam o livro bíblico dos Salmos. Um dos aspectos mais fascinantes da vida de Davi é o fato de sua falibilidade, suas ansiedades e seus defeitos serem expostos da mesma forma que suas inúmeras virtudes. Não é um personagem de conto de fadas. É um cara como eu e você.

Em uma de suas canções (a de número 131 do livro dos Salmos) ele diz o seguinte:

“SENHOR, não é soberbo o meu coração, nem altivo o meu olhar;
não ando à procura de grandes coisas,
nem de coisas maravilhosas demais para mim.
Pelo contrário, fiz calar e sossegar a minha alma;
como a criança desmamada se aquieta nos braços de sua mãe,
como essa criança é a minha alma para comigo.
Espera, ó Israel, no SENHOR, desde agora e para sempre”.

Em poucas palavras, queria compartilhar com você o que aprendi hoje com esse trecho:

1 – Não devo desejar além do que realmente preciso pra viver feliz – é fundamental que tenhamos projetos de vida, eu tenho nutrido vários em mim. Na verdade, nascemos para conquistar, criar, produzir, aprender, ensinar. Acontece que há limites para nossos desejos. Não ceda à pressão de querer ganhar o mundo custe o que custar, de se tornar um milionário, de ser o melhor sempre, de competir o tempo todo. Não acredite que é feliz quem tem mais, quem pode mais. Muitas dessas ansiedades só trazem frustração, porque esse é um jogo que não tem fim, sempre vai faltar alguma coisa. Não seja soberbo o seu coração, nem altivo o seu olhar.

2 – Preciso aprender a calar e a sossegar minha alma – Tem gente que não suporta o silêncio. Isso pode ser um mal sinal. Hoje eu lia um texto muito interessante de Rubem Amorese (www.amorese.com.br/OBRAS/PUBLICADOS/Publicados53.html), no qual ele dizia, a respeito do ser humano moderno: “O silêncio já lhe é insuportável, pois teme um encontro com sua alma, sem saber o que lhe dizer”. De fato, precisamos aprender a meditar sobre nossas ações, nossos princípios de vida, nossas motivações, nossas atitudes. A verdade é que sabemos quando erramos, sabemos quando temos que pedir perdão ou quando temos que reavaliar o rumo das coisas. O que nos impede de tomar as atitudes acertadas? Por que evitamos o silêncio? Por que não nos ouvimos? O filho de Davi, Salomão, reinou em Israel após seu pai e foi considerado o homem mais sábio do mundo. Ele dizia que “até o tolo, quando se cala, é tido por sábio”. Calar pode ser um grande exercício de auto-conhecimento, de humildade e de aprendizado.

3 – Preciso aprender a confiar – A criança desmamada se aquieta nos braços da mãe porque sua relação com ela é de amor, dependência incondicional e confiança total. É essa a relação que tento manter com Aquele que, creio, é o doador e condutor de minha vida. Sei que as coisas andarão em um bom rumo se minhas próprias ansiedades não atrapalharem o processo, me fazendo agir de forma impensada, desorganizada e equivocada. Um profeta bíblico, Jeremias, diria: “Bom é esperar em silêncio a salvação do Senhor”. A criança desmamada se cala ao voltar aos braços da mãe, porque se sente protegida e sabe que será alimentada. Ela não pode fazer quase nada por si mesma, quase não tem consciência do que acontece, mas descansa naquela “sensação” de paz.

Escrevo essas coisas pra você, porque na verdade escrevo primeiro pra mim mesmo, e encontro nessas palavras o consolo que preciso hoje para descansar minha alma, para dormir em paz, para retirar meu coração de dentro do dedo martelado, e devolvê-lo a seu devido lugar.

Tenha paz.

terça-feira, 7 de abril de 2009

A Heroína da Av. Angélica

Segunda-feira, manhã nublada, eu caminhava sozinho pelas ruas de São Paulo, como gosto de fazer quando conheço um novo lugar. O céu nublado, uma fina garoa acabava de cessar. Parei na esquina da Av. Angélica com a Praça Marechal Deodoro. Aguardava o sinal fechar para atravessar a rua.

Uma senhora muito idosa chamava a atenção de todos. Certamente já ultrapassados os 70 anos de idade e provavelmente moradora de rua, D. Eva postava-se em pé naquela esquina, com alguns pertences e um apito na boca. O sinal abria, os carros andavam e então ela fazia sinal para eles andarem, sempre nessa ordem equívoca, apitando sem parar. O sinal fechava, os carros paravam, ela fazia sinal para eles pararem; voltava-se à rua oposta, mandando que aqueles carros andassem, quando eles já tinham saído há alguns segundos. Ela seguia em seu ofício tresloucado, arrancando risos das pessoas, como um maestro insano regendo com dois compassos de atraso uma orquestra de veículos furiosos. As pessoas sorriam, mas não a repudiavam. É provável que sua idade muito avançada lhes tenha enternecido os corações.

Nada sei sobre D. Eva, mas nos minutos seguintes pensei muito sobre ela, sobre o apito insistente, sobre os movimentos atrasados e incertos de suas mãos, sobre seus pertences postos no canto e sobre sua aparente alegria. De alguma maneira, minha leitura daquela imagem me fez crer que D. Eva era um pouco feliz ali. Como se, de algum jeito, ela pudesse encontrar naqueles gestos aquilo que mais buscava: um sentido para sua vida. Naquele ritual aparentemente vazio descansava seu desvairado coração.

Quase posso vê-la sentir o mundo se mover ao seu comando; em seus pensamentos, sua mão tem o poder de mudar as situações; seu apito valente salva a vida de milhares de pedestres indefesos; sua postura ereta e heróica controla os agressivos instintos daquelas máquinas de transporte. Vejo D. Eva, em seu alucinado exercício de poder, representar seu desejo de mudar sua própria história, de controlar seu destino, de tornar sua vida melhor. Ou talvez D. Eva queira apenas uma simples razão de viver.

Lembro-me e recomendo a leitura de “Em busca de sentido” do Dr. Viktor Frankl, neurologista e psiquiatra judeu-austríaco que desenvolveu a Logoterapia. Frankl desenvolveu o conceito de doenças noogênicas (“provenientes do espírito”). Segundo ele, além das causas somáticas e psíquicas do sofrimento humano, era preciso reconhecer um sofrimento de origem propriamente espiritual, nascido da experiência do absurdo, da perda do sentido da vida. Dizia que "o homem pode suportar tudo, menos a falta de sentido".

São nossos pequenos e grandes sentidos cotidianos que nos mantêm vivos. Nossas mais simples razões de existência – amores, trabalho, missão, etc. – nos conferem valor, renovam as esperanças e nos enchem de motivação.



Há meses carrego comigo um celular com câmera. Depois de ver D. Eva e pensar nessas coisas todas, me dei conta de que não registrei aquele momento. Voltei correndo na esperança de encontrá-la, mas ela tinha sumido. Perguntei ao frentista do posto e ele me indicou sua direção. Fui atrás, mas não consegui achá-la. Tirei apenas essa foto da esquina onde a vi.

Disse que nada sei sobre D. Eva. Na verdade nem pude perguntar seu nome. Mas a ela dedico esse texto, com gratidão por me fazer pensar no sentido de minha própria existência, na alegria das pequenas coisas e na beleza oculta em uma manhã de outono paulistano.